A mão roxa de tanto frio. Pernas, esguias,
encostadas ao peito que apertam cada vez mais na tentativa de enganar o frio
que os calções lhe vestem. Pela parede escorre a água que gelo se torna ao
cair, gota-a-gota no chão que o gelo faz cristalino. É este gelo que esconde a
imundice da rua: vidas de lama, sangue de corações que já não batem, olhares
que se prenderam ao chão pelas cordas da vergonha e ainda um travo a medo que
ainda hoje se alimenta do ecoar daquela rua.
A pequena chora. Os pulmões enchem-se com cada
vez mais ar e lá vão libertando tantas lágrimas quanto a memória e a dor
permitem largar. Esfrega os olhos com a terra que já se lhe confunde com a pele
das pontas dos dedos que outrora largam os de sua mãe. Aperta um pouco mais as
pernas e crava os joelhos feridos nas costelas. Grita, mas grita em silêncio.
Soubessem todos como o seu silêncio é tão ruidoso e todos paravam para a ouvir.
Um ruído tão forte que a consome por dentro e lhe faz ficar ali, imóvel, somente
à espera que um dia a venham buscar.
Mas porque falo? Quem me concede este papel de
narrador passivo que se limita a ser os olhos de uma situação que parece não
mudar? Quem? Abre os olhos rapazinho, intervém, faz por mudar o que tanto te
transtorna a visão. Sente como se fosses tu ali, ali mesmo no frio com apenas a
companhia de ninguém, como se fosses tu quem não sabe por que mão esperar para
saltar daquele imundo e pesado chão, quem se senta com receios de avançar
sozinho.
Pudesse eu ter forças, pudesse eu rasgar a janela
e passar para o lado da acção e deixar de vez esta narração que me torna tão
frio, sem sequer fazer por tentar ajudar aquela e tantas outras crianças que
assim vivem, sozinhas, desamparadas e com receio de ser mais, de prosseguir com
sonhos que lhe levaram ou que simplesmente nunca lhe deixaram conhecer. Mas,
por um outro lado, porquê dar-me a esse trabalho se há tantas almas que
encarnam no corpo da maldade, da frieza? São tantos os que por aí se vangloriam
com elmos de sonhos desfeitos e se fazem guerreiros que tomam por armas as
pedras que à primeira oportunidade lançam contra a primeira débil criatura que
atravessa no seu caminho (fosse tão pesada a sua consciência como as pedras que
atiram e seria imensurável a altura de que iriam cair).
Ahh poupem-se os
discursos e todas essas lamechices do bonzinho! Quero ser como eles, quero
beber do cálice de prata e comer ao jantar o que por mim roubam à ralé. Quero ser
senhor de tronos e ostentar coroas de bronze que a tradição manda usar. Quero
trazer nas veias um veneno que se fortalece com a raiva de que me alimento. Não
me critiquem, não me critiquem quando parece que o mais fácil é por ao rei a
coroa do que fazer-lhe de almofada. Não me julguem quando vejo que tantos
preferem carregar pedras que ajudar a removê-las dos que um dia estiveram sobre
o mesmo tecto.