Juventude atormentada, assim vive já marcada. A pobrezinha (o próprio jeito faz imperar o diminutivo) está ali, está ali porque lá a deixaram, como o boneco de porcelana e marfim que adorna a real sala do trono do Senhor. Numa eterna espera, faminta de consciência, a pequena reza pelo dia em que o sol irá para si brilhar como para todos os que seu pai condena à prisão da obediência desinteressada (apenas porque o desinteresse é a mais fácil forma de enganar aqueles para quem a ignorância nunca nasceu).
As vestes que lhe fazem arrastar pelas pedras do castelo são já gastas, não que tenham já muito uso, não, apenas por que sempre estiveram guardadas no armário da tradição e da hereditária responsabilidade de acenar aos súbditos que o coração imperam considerar pais e mães, aqueles que lhe deram berço e embalo quando ainda chorar era a única forma que conhecia para se manifestar. Hoje já nem o manifesto lhe pertence, foi-lhe retirado em nome do sangue que traz nas veias. Já sua avó sabia que jamais poderia levantar leve mão contra o cerrado punho de seu senhor. Ela não poderia ser diferente.
Chega à sala do trono a aia e a menina, apenas com o olhar (que só este sorriso lhe é permitido perante um plebeu), sorri. Levanta a fraqueza que lhe sustenta o corpo e balança os cabelos quase soltos até aos seus aposentos. A menina estava quase despenteada e seria inoportuno para sua mãe que as damas da realeza a vissem assim. Trocam-lhe o vestidinho, arranjam as melhores flores, que as terrosas mãos do jardineiro real permitiram ali chegar, e delas fazem as amarras da trança que irá servir de encanto aos sarnentos pretendentes que hão de vir ver a princesa esta noite.
A cozinheira já tem os perus no panelão e dada foi já a ordem de "que se apronte o salão de honra", onde mais tarde se irão sentar à mesa suas realuzas as insensibilidades e os interesses reais. Vem a sra de Atrás do Reino, o Duque do Reino da Cobiça e, por fim, os reis de "Sabe-se lá o que quer".
Vêm este e outros, todos com um interesse em comum, cortejar a inocência e a pureza daquele ser, não a princesa, apenas uma vontade e um desejo que esta ainda não tem. São cães, diria, são cães ao mesmo osso. Que vão todos, que vão e não voltem. Que deixem em paz a pequena que o único mal que até hoje fez foi não fugir e ficar ali naquela atmosfera de hormonas que actuam em contra-relógio, capazes de destruir e pisar aquele que se atravessar no seu caminho, aquele que não quiser cumprir majestosa vontade. A todos esses daria de presente a corda da forca, a corda que haveria de ser para eles tão branda como foram para todos os que morreram às suas mãos, aos seus caprichos repugnantes de sangue que não tinha outro efeito se não cobrir as manchas que a cobardia lhes fez deixar espalhadas por tantos e tantos cantos.
"Jovem princesa foge, foge desse antro de falsidades e de jogos em que a cadeira onde se senta teu pai é o único que pinoco que avança neste jogo de monopólio de vontades. Foge e faz de ti uma alma capaz, audaz e que um dia ficará na história pela diferença que fez."
Assim fez a pequena! Escapou da fatal seia e acabou morta pela lâmina da espada do próprio pai. O seu sangue chora-o sua mãe que se desfaz em lágrima que encobre nas saias da sua aia aquando dos tempos de criança, que demonstrar sofrimento pela sua filha seria letal aos olhos de El Rei seu marido. Chora uma mãe a dor de uma filha que um pai preferiu ver morta. Interesses, vontades e jogos de poder? Ficai vós com eles Senhores.