segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O jogo da (real) vida...


Juventude atormentada, assim vive já marcada. A pobrezinha (o próprio jeito faz imperar o diminutivo) está ali, está ali porque lá a deixaram, como o boneco de porcelana e marfim que adorna a real sala do trono do Senhor. Numa eterna espera, faminta de consciência, a pequena reza pelo dia em que o sol irá para si brilhar como para todos os que seu pai condena à prisão da obediência desinteressada (apenas porque o desinteresse é a mais fácil forma de enganar aqueles para quem a ignorância nunca nasceu). 

As vestes que lhe fazem arrastar pelas pedras do castelo são já gastas, não que tenham já muito uso, não, apenas por que sempre estiveram guardadas no armário da tradição e da hereditária responsabilidade de acenar aos súbditos que o coração imperam considerar pais e mães, aqueles que lhe deram berço e embalo quando ainda chorar era a única forma que conhecia para se manifestar. Hoje já nem o manifesto lhe pertence, foi-lhe retirado em nome do sangue que traz nas veias. Já sua avó sabia que jamais poderia levantar leve mão contra o cerrado punho de seu senhor. Ela não poderia ser diferente. 

Chega à sala do trono a aia e a menina, apenas com o olhar (que só este sorriso lhe é permitido perante um plebeu), sorri. Levanta a fraqueza que lhe sustenta o corpo e balança os cabelos quase soltos até aos seus aposentos. A menina estava quase despenteada e seria inoportuno para sua mãe que as damas da realeza a vissem assim. Trocam-lhe o vestidinho, arranjam as melhores flores, que as terrosas mãos do jardineiro real permitiram ali chegar, e delas fazem as amarras da trança que irá servir de encanto aos sarnentos pretendentes que hão de vir ver a princesa esta noite. 



A cozinheira já tem os perus no panelão e dada foi já a ordem de "que se apronte o salão de honra", onde mais tarde se irão sentar à mesa suas realuzas as insensibilidades e os interesses reais. Vem a sra de Atrás do Reino, o Duque do Reino da Cobiça e, por fim, os reis de "Sabe-se lá o que quer".

Vêm este e outros, todos com um interesse em comum, cortejar a inocência e a pureza daquele ser, não a princesa, apenas uma vontade e um desejo que esta ainda não tem. São cães, diria, são cães ao mesmo osso. Que vão todos, que vão e não voltem. Que deixem em paz a pequena que o único mal que até hoje fez foi não fugir e ficar ali naquela atmosfera de hormonas que actuam em contra-relógio, capazes de destruir e pisar aquele que se atravessar no seu caminho, aquele que não quiser cumprir majestosa vontade. A todos esses daria de presente a corda da forca, a corda que haveria de ser para eles tão branda como foram para todos os que morreram às suas mãos, aos seus caprichos repugnantes de sangue que não tinha outro efeito se não cobrir as manchas que a cobardia lhes fez deixar espalhadas por tantos e tantos cantos.

"Jovem princesa foge, foge desse antro de falsidades e de jogos em que a cadeira onde se senta teu pai é o único que pinoco que avança neste jogo de monopólio de vontades. Foge e faz de ti uma alma capaz, audaz e que um dia ficará na história pela diferença que fez."

Assim fez a pequena! Escapou da fatal seia e acabou morta pela lâmina da espada do próprio pai. O seu sangue chora-o sua mãe que se desfaz em lágrima que encobre nas saias da sua aia aquando dos tempos de criança, que demonstrar sofrimento pela sua filha seria letal aos olhos de El Rei seu marido. Chora uma mãe a dor de uma filha que um pai preferiu ver morta. Interesses, vontades e jogos de poder? Ficai vós com eles Senhores.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Homem não é um animal, é vários!

Sugestão do autor
Ouve enquanto lês: Patrick Watson - The great escape

Às vezes dou por mim a reflectir sobre a natureza do Homem. Nos últimos dias cheguei provavelmente  à mais próxima conclusão daquela que poderá ser satisfatória para aquela poderosa controladora do meu corpo, a memória. Que dita então esta conclusão, que não passa de um devaneio, que escrevi ao som de uma música intitulada "The great escape" (A grande fuga)?

Eis, então, que me deparo com uma variedade imensa de significações em torno da natureza do Homem e concluo que este não é nada mais que o resultado fatal de uma encarnação sucessiva de vários animais.
Ora vejamos, tem fazes em que é (o Homem) com um pequeno cachorro: dotado de inteligência mas não fala e parece que insistem em tratá-lo como se de nada percebesse.   Aquele tonzinho de voz irritante que teimam em usar para se dirigir a si, como se o reduzissem a uma pequena esponja que tem, a toda a força, que re-gis-tar cada si-la-ba que ouve.

Depois, lá cresce e passa a encarnar a pele de uma chita. A saber, abandona a inocência do canito e crescem-lhe as garras. Começa a ter sobre olho todos os mais fracos (ou que assim pensa ser) e está pronto a atacar, feroz e implacável. O sangue que lhe corre nas veias apenas é quente quando se trata do emergente desejo carnal que agora começa a sentir, que para outras coisas é bem frio, por vezes vil. O sangue parece ser o único sinal de satisfação da fome que tanto lhe aguça o dente que tanto esperava pela hora da seia (o ataque está consumado e a vítima desfeita).

Cresce mais um pouco e a chita perde a velocidade, estabiliza num estado de abelha. O Homem ganha asas, alguma independência, e até uma função específica. Regra geral a de abelha-rainha  Nesta fase apenas preocupam-lhe o saber e o trabalho, a organização está junta com o mel na colmeia e por ali se mantém. Mas, calma, não despertem nem incomodem sua Exa. a Abelha-rainha,  caso contrário esta impõe majestoso ferrão e faz dele a mais poderosa arma que, antes escondida, agora é letal para a competição (não fosse aquela a sua colmeia e não a de outrem). Muito empenhada em fazer o seu mel e quase sempre tranquila, mas, mesmo que de forma latente na consciência, não deixa de ser senhora de todas as obreiras que lhe se lhe apresentam como súbditos.

Enfrenta mais uma década ou duas e regressa aos canídeos, desta feita como a cadela progenitora. Quem não sabe que uma cadela acabada de parir protege com dentes e garras os filhos? Experimente lá você colocar a mão em frente da vontade de tirana mãe e verá que se lhe sucede. É agora que tem que olhar, sobretudo, pelos seus. A velocidade e ataque de chita já pouco lhe servem. A calma da abelha? Tratarão as crias de lha fazer esquecer. Assume lar, responsabilidade e outra encarnação, a mais atarefada talvez, até porque os anos passam e de abelha a cadela o trabalho dobra muito. 

Mas, talvez o ponto mais óbvio e fácil de perceber de todo este meu pensar (que é de certo errado aos olhos de uns e até ridículo aos de outros), é precisamente o de que o Homem encarna ao longo da sua vida um animal que acaba por se ir manifestando de diversas maneira. 

O Homem, o próprio homem é um animal. Ele não trata mal? Não julga à luz do preconceito e da injustiça? Não faz da moral sua propriedade e sai por aí a distribuir lições como se de rebuçados se tratasse? Não encara muitas vezes os outros seres que com ele habitam sem escrúpulos alguns?
Então, que espécie de animal é este se não o Homem? Por isso digo, o Homem não é um animal, é vários. É precisamente por esse motivo que ainda tento perceber como é que ele pode encarnar de novo outro animal, talvez um pássaro, e fugir dessa linha de encarnações que o conduz a uma personalidade que herda de outros e não àquela que por si constrói. Talvez a solução seja mesmo a fuga, a grande fuga!