domingo, 8 de julho de 2012

Vidas de lama... (continuação)

O galo canta, canta cada vez mais cedo e teima em acordar-me de um sono que à muito não é real. Finjo dormir, fecho os olhos e oiço constantemente,  na minha cabeça, os gritos das mulheres que tentavam escapar das nojentas mãos dos homens que lhes entravam tenda a dentro, os gritos dos filhos a quem tapavam os olhos para que não vissem aquilo que muitas vezes estava na origem do seu nascimento. Gritavam tão alto! Grunhiam até como se um pedaço de vida perdessem, como se lhes levassem parte da alma que as assombrava e que as fazia viver de cabeça caída, envergonhadas por terem que se acostumar a estar prontas para receber os homens que os seus tinham ido defrontar.

Então tudo parava. Um estranho silêncio que um ou outro choro irrompiam. Era nestas alturas que me amedrontava ainda mais e que desejava respirar por mais uns minutos que fosse, que ao menos pudesse voltar a ver os que ainda nessa manhã me tinham dado o pouco que tinham no tacho, para enganar a fome que à tanto perdura.
O cheiro a medo e a raiva simultânea pairava em volta das pobres mulheres. Algumas mães, outras viúvas, outras apenas mulheres... todas elas sofreram de alguma forma.
O fedor que vinha do campo fazia chegar-se a grande velocidade e anunciava já a morte dos nossos. Sempre são os nossos que morrem. 

Ou morrem de espada e machado cravados no corpo, ou morrem porque perdem realmente a vida que, enganados, ainda pensavam possuir. Oiçam-me: as nossas vidas, as que julgamos nossas, não pertencem se não àqueles que, por de trás da muralha, se vão alimentando de vidas perdidas, aqueles que arrotam vitórias que nós lhes vamos servindo em travessa de cobre, nós os reles vagabundos que a lama ensanguentada disfarça na sola dos pés dos senhores.

Cheirassem seus pontiagudos e delicados narizes as casas onde vou descansado os ossos (não tenho uma fixa desde que me levaram os que me puseram no mundo) e veriam que vidas, essas que tanto menosprezam, serão mais do que viver sentado numa poltrona, mais do que viver num constante dilema sobre que vestido usar para que seu marido consiga melhor fingir o amor que lhe convém sentir, mais do que pequenas idas e voltas entre pajens e criadas que fazem com que o Rei se perca ou desvie, sabe-se lá porquê (e sabe de certo), a meio do caminho. Vidas? Fossem eles feitos do mesmo que os nossos moribundos corpos e não de porcelana e talvez, então, conseguissem enxergar melhor o que uma vida é.

É esta minha raiva, esta minha dificuldade de perceber estes caprichosos detentores do poder, que me faz manter aqui, que me faz esconder que um dia fui um deles. Ah como me arrependo de me lembrar que em tempos, num outro reino, também eu, mesmo em criança, pegava já na ponta da seta que o meu pai, mesmo comigo ao colo, atirava do alto da torre.

Vidas de lama...

Chego agora à conclusão de que há guerras que nunca chegam a ser vencidas... por não existirem duas frentes no campo de batalha. Sei do que falo. Eu mesmo sofri na pele a frieza de uma espada empunhada por alguém duas ou três vezes mais velho e maior que eu!
As espadas deixaram de se ouvir! Uff, lá escapei a mais uma!

As mãos ficaram frouxas, os braços desgastados, as pernas cansadas e o sentimento de raiva esmorecido. Cai por terra a espada! Cabeças que ficaram no sitio, crianças que sobreviveram junto das mães que assim escaparam ao sacrifício (que não foram violadas, entenda-se), animais e terrenos que ficam por conhecer e tantas vidas que ainda se vão mantendo presas aos corpos dos que partiram de armadura cravada na pele  (umas de pau outras de ferro) e rostos cobertos pela sombra do receio, do medo de não voltar a ver os que choraram a sua ida.

Lama ensanguentada cobre agora o lugar onde se recolhem as botas dos que já não as precisam, as espadas e machados dos que perderam as mãos que os seguravam e ainda as roupas dos que verão ser queimados ainda hoje, mal se ponha o sol. É já sabido que o fedor nauseabundo da morte não tarda a assombrar os campos.

O miúdo da tenda dos ferreiros (e não me critiquem por lhe chamar assim mas o seu nome levou-o a mãe que enterraram quando o pôs no mundo), bem que tenta procurar pelo pai mas, coitado, não o consegue reconhecer em nenhum dos rostos que menos se desfigurou. Mas, perceba-se, identidade é coisa que por aqui já à muito que se perdeu. Somos todos espadas, somos todos escudos, vassouras, baldes, animais prontos a ser usados e mortos sem merecer sequer um olhar nos olhos que justifique o porquê de tal frieza!

Pudesse eu juntar todo o ferro que temos connosco, o que nos vai sua majestade cedendo em troca de umas boas dezenas de vidas perdidas em seu gentil e honrado nome, e faria deste o campo mais resistente que alguma vez cavaleiros pisaram. Sim, faria deste um campo em que crianças pudessem sê-lo, em que não tivessem que ser escondidas por ofender sua majestade a rainha ao descobrir que o marido satisfez gentil capricho na cama das cozinheiras e onde não tivesse que continuar a ouvir, constantemente, o choro de uma inocente vida recém-chegada a ser calado! Pequenas vidas que rápido conhecem a morte, mães cujo ventre recebe o fruto real e acaba desfeito, homens que nem chegam a poder criar, muitas vezes sem saberem, o filho daquele por quem morrem... 

Vidas atrás de vidas! Vidas que servem de peões neste jogo do poder, sem valor algum aos olhos de quem se senta num trono que esquece ter sido construído pelos que agora, depois de nele sentado, manda matar sem que a sua frágil e pálida pele se engelhe como sinal de preocupação ou remorso.

Vidas em tempo de guerra? Tomara eu não ter que temer pela minha a cada cantar do galo!