O galo canta, canta cada vez mais cedo e teima em acordar-me de um sono que à muito não é real. Finjo dormir, fecho os olhos e oiço constantemente, na minha cabeça, os gritos das mulheres que tentavam escapar das nojentas mãos dos homens que lhes entravam tenda a dentro, os gritos dos filhos a quem tapavam os olhos para que não vissem aquilo que muitas vezes estava na origem do seu nascimento. Gritavam tão alto! Grunhiam até como se um pedaço de vida perdessem, como se lhes levassem parte da alma que as assombrava e que as fazia viver de cabeça caída, envergonhadas por terem que se acostumar a estar prontas para receber os homens que os seus tinham ido defrontar.
Então tudo parava. Um estranho silêncio que um ou outro choro irrompiam. Era nestas alturas que me amedrontava ainda mais e que desejava respirar por mais uns minutos que fosse, que ao menos pudesse voltar a ver os que ainda nessa manhã me tinham dado o pouco que tinham no tacho, para enganar a fome que à tanto perdura.
O cheiro a medo e a raiva simultânea pairava em volta das pobres mulheres. Algumas mães, outras viúvas, outras apenas mulheres... todas elas sofreram de alguma forma.
O fedor que vinha do campo fazia chegar-se a grande velocidade e anunciava já a morte dos nossos. Sempre são os nossos que morrem.
Ou morrem de espada e machado cravados no corpo, ou morrem porque perdem realmente a vida que, enganados, ainda pensavam possuir. Oiçam-me: as nossas vidas, as que julgamos nossas, não pertencem se não àqueles que, por de trás da muralha, se vão alimentando de vidas perdidas, aqueles que arrotam vitórias que nós lhes vamos servindo em travessa de cobre, nós os reles vagabundos que a lama ensanguentada disfarça na sola dos pés dos senhores.
Cheirassem seus pontiagudos e delicados narizes as casas onde vou descansado os ossos (não tenho uma fixa desde que me levaram os que me puseram no mundo) e veriam que vidas, essas que tanto menosprezam, serão mais do que viver sentado numa poltrona, mais do que viver num constante dilema sobre que vestido usar para que seu marido consiga melhor fingir o amor que lhe convém sentir, mais do que pequenas idas e voltas entre pajens e criadas que fazem com que o Rei se perca ou desvie, sabe-se lá porquê (e sabe de certo), a meio do caminho. Vidas? Fossem eles feitos do mesmo que os nossos moribundos corpos e não de porcelana e talvez, então, conseguissem enxergar melhor o que uma vida é.
É esta minha raiva, esta minha dificuldade de perceber estes caprichosos detentores do poder, que me faz manter aqui, que me faz esconder que um dia fui um deles. Ah como me arrependo de me lembrar que em tempos, num outro reino, também eu, mesmo em criança, pegava já na ponta da seta que o meu pai, mesmo comigo ao colo, atirava do alto da torre.
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