quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Desespero silênciado

Continua no silêncio. Permanece calada e ali remanesce, gélida e desamparada, pobre infância!
Fecha os olhos e ouve os gritos que outrora lhe feriram o sentir e foram ponte para o desespero. Aconchega as pernas contra o peito, agachada no alpendre da casa de alguém, e, numa agitação frenética, deixa-se consumir pela recordação de dias passados. Jaz ali, com ela, uma vontade de ser mais, de ser um objectivo e não um simples corpus. Deixou que lha levassem!
Saberia tão jovem inocência que lhe fariam tal mal ao expô-la a semelhantes situações? Saberia ela que ver aquelas imagens lhe marcariam corpo e mente por anos? Julgo que não. Mas também de nada a salvaria ser portadora de tal conhecimento.

Heis que já o sol raiava quando acordou, estremecida, com os gritos da progenitora. Soltava gritos de desespero e lágrima de aflição a cada pancada que levava. O homem, tomado pelo álcool (ou apenas pela loucura que com ele nasceu), por entre ofensas e represálias, não hesitava em fazer uso da força e empunhar raivas que a pobre coitada não havia despertado. Não que tivesse feito por isso. A pequena levantou-se e dirigiu-se à cozinha, de onde vinha todo o ensurdecedor afligir da mãe.
Chega e depara-se com uma cena de violência tal que as lágrimas que, quase que por impulso, se lhe fizeram correr cara a baixo. Ele empurrava a mulher contra a parede com a mesa em que esta lhe punha a refeição sempre que o capricho tinha apetite. O ventre dela, cada vez mais fraco, começava a não resistir mais às investidas! A menina, congelada e em pânico, sentou-se no chão e nem sabia que fazer. Agarrou a cabeça e tentava não ouvir a dor que ecoava em cada canto da já habituada casa. A mãe olhava para ela, lavada em lágrimas, e chorava ainda mais por ver a sua pequena ali. Um olhar pesado, marcado pela violência e pelo desgosto, que era também um poço de medo. Um último pestanejar, e partiu. Não sofre mais a mulher que consigo levou uma vida de repressões e silêncios em si aprisionados.

Assim ficou cravado na mente da pobre menina um horror indelével. Quantas mais não terão passado pelo mesmo? Quantas mais não terão sido espectadoras de mães violentadas e espezinhadas? Pudesse aquela pequenita livrar-se de tal herança e seria ela outra pessoa.
Retoma o olhar e abandona esta recordação. Continua ali sentada no chão frio, à chuva, com apenas a roupa que lhe deixaram no corpo e com o sangue ainda quente. Tinha sido à horas. A criança balança-se para trás e para a frente, tentava, talvez, abandonar aquela penosa imagem que lhe consumia a inocência.
Deixem-na, bolas deixem-na ser criança se mais não posso pedir! Que será feito dela? Por que ruas se irá perder até se encontrar, no meio de tantas e tão pesadas memórias?
Pois é, a cada dia que passa a violência continua. São mães e filhas, são namoradas e amigas, são cada vez mais as vítimas de violência que sofrem nas mãos de loucos a quem a consciência fugiu por entre os dedos que se cerram para passar para inocentes violentas palavras e gestos! É triste saber que ainda continuam a permanecer silenciadas dores e aprisionadas vozes que temem soltar-se...

A menina levantou-se, finalmente! Não que tenha recuperado, não que tenha seguido em frente, não que tenha sido por vontade de avançar para mais um dia atormentado, NÃO, apenas porque as ruas não são boas conselheiras e o baloiço onde costumava sentar-se para que a mãe lhe fizesse uma trança ainda baloiça. Continuam as correntes que o sustentam a chiar sorrisos de outras vidas e de outras crianças que perderam mães e pais por tão macabros motivos.
Já no baloiço, a pequena vê um urso de pelúcia. Tinha-o lá deixado dois dias antes. Ainda tinha o perfume da mãe e a pequena, ao se aperceber, sorriu! Sorriu porque ali, naquele preciso instante, se apercebeu que, por muito que lhe tirassem o seu porto seguro, que lhe arrancassem das mãos a felicidade e inocência; não perderia as lembranças (ao menos que lhe valham essas) de um amor que um dia lhe deu colo e empurrou o baloiço!

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