domingo, 28 de outubro de 2012

Filha das ruas!


Jaz ali, ainda quente e ferida, a mãe de uma criança agora órfã! Aos seus pés, descalça, com a cara marcada pelo gelo que a noite faz sentir, a pequena miúda de apenas 2 anos ou pouco mais (já nem o tempo sabe precisar a idade desta inocente vida) tenta trepar pelo petrificado corpo da mãe. Chora, choram as duas: uma porque a mãe não lhe responde, outra por morrer a olhar para a pequena bebé que ainda à pouco o seu ventre havia conhecido e a sua vista estava prestes a perder.

A pequenita ainda mal dava seus passitos. Não que não fosse já idade de os saber dar, apenas nunca teve uma mão que lhe amparasse a sua aquando do tempo em que devia largar já o imundo e lamacento chão, deixando de gatinhar, portanto. Apesar de desconhecer o pai, para esta criança a mãe nunca foi a única figura presente. Era frequente vê-la partir e chegar, por 5 minutos que fosse, com um homem, que nem todos os dias era o mesmo. Bastava olhar para aquele olhar, um olhar tão novo e já tão cansado de rostos alheios a si, rostos perversos e sujos, mãos grutescas e excessivamente curiosas; que se percebia logo um pouco do que era o mundo daquela menina. 

A mãe, para alguns rameira e trapo de esquina, para outros mulher sem sentimento algum ou emoção, estava sempre ali, num insaciável vai e vem, sempre a pisar uma rota que encarava todos os dias com a mesma expressão na cara: absolutamente nenhuma. Nem o corpo lhe parecia já pertencer. Parecia que as próprias pedras que calcava lhe conheciam já os pés e os faziam andar em frente. As mãos, caídas ao longo da anca, pareciam já nada sentir. O olhar, esse sim, era nele que transparecia a perdição, a ausência de uma qualquer coisa, de um alguém qualquer, de um ser que pudesse dar razão ao existir daquele gasto e sujo corpo. Aparentava saber de cor as ruas que percorria consoante o rosto que se lhe apresentava. 

Não pensava já ao que ia, apenas ia. Ia e voltava sem qualquer tipo de justificação, pelo menos que assim pudesse perceber a pequena que deixava embrulhada numa manta de trapos que roubou no dia do seu nascimento. Pobre criança. Todos os dias os seus olhos perdiam um pouco do brilho que a lua lhe dava nas noites em que o medo e o abandono lhe faziam companhia. Chorava, chorava durantes horas, durantes luas... e nunca tinha uma mão, um dedo que fosse, a que se agarrar. Que é feito de ti mulher? Que é feito do que deverias trazer por de trás desse peito inchado? Onde perdeste o coração que não ouve já o de tua filha? Dizei-me, dizei-me se ainda tendes voz! Se não vo-la tiverem já roubado aqueles que te fazem gritar por um prazer que já nem fingis sentir.

Ruas de lama, de sangue, de nojo! Chega um homem, um senhor, um agricultor, quem for... larga tudo e vai, vai sem temer quem encontrará por debaixo das vestes que já nem se preocupa em ver. Apenas chega, fecha os olhos e deixa que tudo aconteça, que tudo lhe façam. Já nem a dor consegue sentir. Nem sequer o mais repudiante homem lhe faz espécime. Perdeu-se!

"Pergunto-me, pergunto-me fatidicamente: que raio de mulher será esta que vende o corpo que já nem carrega por vontade, que se deixa cair nos braços de homens e vagabundos por meia-dúzia de tostões e que parece fazer de sua filha um adereço que larga quando não precisa?" Assim pensava eu!

Agora, agora tudo mudou. Agora sei a resposta a estas questões, agora sei que sentimento (sim, existia um) movia aquele corpo sem aparente razão. Agora sei que mulher era capaz de protagonizar tais acções. Era a mesma mulher que matou o marido para que este não fizesse à filha o mesmo que lhe fizera, um dia, seu pai; meteu-a na rua, sem remorso ou arrependimento, para que ganhasse a vida - dizia ele - com as mesmas pernas com que também nas ruas engravidou. Era ainda a mulher que hoje percebo porque sempre regressava para junto da sua filha: apenas quando olhava para aqueles redondos olhos, para aquela pequena criança, conseguia lembrar os tempos em que também ela fora menina, o tempo em que ainda sentia alegria quando podia passar nas ruas apenas sorrindo e a cantar, sem que a vissem como hoje vêm, como um brinquedo sexual. 

A certo dia, quando voltava da rua onde deixara mais um homem satisfeito, deparou-se com a sua menina acordada, apenas coberta com a manta cada vez mais gasta. Pensou por um pouco (parecia que o seu olhar mudava), segurou na pequena por algum tempo e disse-lhe: "Que assim te livres de um peso que eu à muito carrego e que te não quero passar". Aguardou a chegada do oficial que já sabia passar a fazer a ronda dali a nada, deitou a menina no chão e, assim que ouviu as suas botas pisar as pedras, cravou no peito a faca que trazia na meia rasgada e deixou cair uma lágrima. Despediu-se assim das ruas, já de olhos fechados e com dor gravada no rosto, a mulher que queria dar à filha uma outra vida que não a sua: "Órfã de pai e mãe, mas criança serás"!

Questiono-me porque assim tenha sido. Talvez porque nem todos nascem em berço d'ouro, porque nem sempre todos nascem para ser alguém cujo nome consta nos livros do historiador... porque haverá sempre alguma filha das ruas por aí! 

sábado, 27 de outubro de 2012

REAL(mente) COSTUME!

Pairam no ar, leves, os pedaços do pó que a criada ainda não apanhou. A senhora dorme. Já Dom senhor abre, sem qualquer disfarce ou embaraço, sua real pestana para verificar se a pajem se digna a dobrar os joelhos para limpar debaixo do móvel que fica de frente para ele (não tivesse sua senhoria ordenado que fossem curtas as vestes). 


Nos corredores, junto com o primeiro raio da manhã, corre já a pequena princesa. Cabelo ainda solto das vis amarras de sua aia, descalça, calca o real piso que, demorada, percorre até ao quarto daquele que um dia lá fez o jeitinho de deixar que sua esposa, coitada, se servisse da força real que este ostentava trazer no sangue para lhe por no santo ventre tão esperado rebento (já a mãe do Rei lhe dava palmadinhas nas costas: "olhai, senhor, que ou fazeis de vossa rainha mulher, ou fazeis de vós menino). Lembrava, ao sonhar, como tinha decorrido tal noite (que quase foi dia)...


Escolhidas as vestimentas, ordenadas as ferramentas (que quase não cumpriam o dever), prepara-se então El Rei para se juntar a sua virgem esposa. Levanta então, com pesado esforço, do trono: começa por acordar o dormente pézinho que o couro já não aquece (aquece-o a gordura ao invés), arrasta uma perna para a frente da outra, levanta a barriga e começa a marcha, lenta, até ao fundo corredor onde, já fazia horas, se preparava a recepção do fervilhante (assim se esperava) sangue real.
Já na caminha de madeira, herança de El Rei Dom Costume, estava imóvel e serena pureza que já quase adormecera.
Com uma mão caída sobre o travesseiro a pronto ajeitado pela aia e a outra sobre o inexplorado peito, sua majestade a rainha esperava a chegada de seu senhor (apenas porque marido seria demasiado plebeu).


Chega o rei! As arpas principiam então a melodia que embalaria o senhor no caminho do dever: ele deitado, ela lá se envolve nele, solta um ligeiro "ui" (que os escondidos hábito e vontade ensinaram a simular) e está então preparada para repousar, não vá a força real ter sido pouca e ter-se ficado a criança a meio do real ventre.


"Acorde senhora, acorde!" E lá desperta sua senhora do sono (não arrisco dizer sonho por não saber se seria antes pesadelo) e, prontamente, chama por sua pequena Matilde, a segunda. Despenteada, com cheiro ainda de cozinha, chega a pequenita, que salta para o colo da aia (não que não tivesse vontade de o fazer para o colo de sua mãe, mas a pesada coroa não deixava espaço para mais nada sobre aquele corpo). Cheiro a cozinha, sim, um cheiro que já seu pai trazia. Não que o Rei a este compartimento se dirigisse (pelo menos que assim se deva pensar), não, apenas porque sua majestade havia continuado com o cozinheiro do palácio o serviço que seu marido não foi capaz de desempenhar. Fez do cozinheiro o pai do herdeiro que, por ser de mais tenra idade, lá satisfez a necessidade.


Entre os seios da rainha, calou a boca o criado. Lá fez a sua função, mesmo sabendo que filho seu chamaria pai a outro. Se o rei sabia? É claro. Que sua senhora ia provando as maçãs que o povo trazia ao palácio, sabia e não se importava ele. Se preciso fosse também dava uma dentadinha nas batatas que lhe vinham as jovens filhas do agricultor trazer a provar. E assim se iam fazendo os favores e as trocas. Fosse a coroa pequena e teríamos o caldo nas couves, mas, como o Rei também herdou de seu pai a pesada ornamentação que trazia na testa, está o caso resolvido. 


Mas no meio de tanta correria, tanta entrada e saída do palácio, com tantas heranças desconhecidas (mas apreciadas) de pais para filhos passadas, onde fica a avó da princesa? A verdade é que a gentil senhora, percebendo a nora, se teria que manter nas caves e nas cozinhas. Afinal de contas, quem iria, se não ela, dizer ao cozinheiro e ao agricultor que mandassem, respectivamente, a mercadoria à rainha e ao rei, a ver se de seu agrado era? Fazia a antiga rainha os preparativos para toda a corte e ainda se juntava a esta: mandava vir o primo do falecido rei, este ajudava-a e (herdando o cavalheirismo do irmão) ainda a levava a ver os jardins à noite, quando já todos dormiam, não fosse pobre senhora assustar-se com um toquezinho ou outro que pudesse surgir no escuro.


A criança, jovem princesa, essa deixa-a cantar pelo corredor fora, deixai-a correr livre pelos quartos que um dia, quando crescer e sua mãe lhe ensinar a ser rainha, se há-de mudar para a cave. Assim não demorará metade do tempo que demorou sua avó, nem um terço do que demorou sua mãe até à cozinha, quando se acertar a noite em que chegue a sua vez de receber a semente que traz cravado um passado e um futuro de reais mentiras.
 

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Real engano!


Ela dizia-lhe que não! Ora, sejamos explícitos: dizia? Não, acenava de forma subtil o lencinho que roubara ao senhor doutor por capricho, não fosse este falhar no pagamento pela ajudinha prestada. Ele insistia, insistia e até dava um paço maior que a perna a ver se a da gentil dama da sua se acercava. Um piscar de olho, um franzir de sobrancelha, e o pobre do rapaz que se não apercebia que estes gestos lhe passavam ao lado, eram simplesmente insignificantes aos maquilhados olhos da senhora. Decide então ser mais, digamos assim, atrevido: avança com um breve toque na cocha e inicia assim uma diferente abordagem no cortejo. 
Ela, habituada a ser o pavão mais admirado na sala, sorri e põe à prova (oxalá para o rapaz que num sentido literal fosse) os apetecíveis e carnudos lábios que o já cansado batom vermelho esconde. Entusiasmado por tal gesto, que para ela não passava de um habitué, lá responde na mesma moeda e liberta escassa risada. 

Troca de sinais, um passo aqui outro acolá, dá-se o cortejo por acabado e está o homem tramado. Eis que se vê cair em teia tal que não há braço que lhe valha ou perna que o socorra. Agarra-lhe ela pela mão e leva-o rumo à sala refundida num recanto que este desconhecia até então. Digo-vos eu: era o quarto da nobre senhora.
Assim ostentava tal concepção arquitectónica: um ambiente com pouca luz (só as velas quase derretidas acesas), cortinados vermelho veludo, cama semidesfeita (usada fazia horas) com os lençóis de seda turquesa à vista. Estava pronto e mais que pensado o chamariz que o iria atrair aos aposentos que, vá-se lá saber como ou porquê, aparentavam já contar com tal visita.

Disfarçando o à vontade com que se sentia já confortável, lá desaperta o botão cimeiro do corpete, que "estava a apertar", dizia. Compõe o cabelo, ajeita a saia que outrora lhe cobria os tornozelos e cruza as pernas na cadeira de napa já gasta. Ele ainda meio nervoso, desconhecedor deste tipo de situações, apenas compõe a lapela do casaco que esta teimava em desajeitar com amassos sucessivos. Juntam-se então no fundo da cama, a pretexto de retirar os sapatos que causavam incómodo e do casaco que estava a causar calor (ainda ele se questionava se esse seria realmente o "factor calor" presente).


Despachada, não tardou a fazer do inocente jovem um objecto que atirou à cama e que fez por desinibir. Provocando qualquer tipo de reacção, teria senhora seu trabalho ganho.
O rapaz, inexperiente, deixou-se ir, guiado pelas mãos e envolvente corpo que à já muito conheciam os caminhos a percorrer. Estava assim consumado o acto: um só movimento e o menino passava a ser um homem, um homem que queria agora dominar a situação já que, afinal de contas (mesmo sem o saber), lhe iria sair cara a ousadia. Um respirar mais acelerado, alguma estranheza ou talvez repúdio e uma envolvência cada vez mais acrescida por parte do jovem. Ela habituada e experiente, ele numa embrulhada mas contente. 

Envolto no cheiro que fora por muitos deixado dos lençóis, acorda o rapaz. Ele satisfeito, para ela tanto faz!
Prepara as vestes que a mãezinha lhe dera para festa da noite, calça as botifarras que lhe oferecera seu avô antes de morrer (teria, possivelmente umas que melhor lhe servissem na ora da partida) e desperta do grosseiro ressonar a senhora dona. Acorda ela mal disposta porque não havia ganho a aposta.
Verdade, eis que El Rei, Dom, Senhor, Excelência e todas as idiossincrasias a este cargo associadas, tinha contratado a rameira que o havia desflorado, para também cumprir tal serviço com seu filho amado. Ora, mas porquê a aposta? Então não é que sua majestade, querendo fazer do filho um macho (assim se entendia na altura), teria feito a aposta que este se acanharia e não iria fazer valer o sangue real que nas veias trazia? Já a contratada dama atreveu apostar ainda mais, que este fugiria a sete pés para as saias de sua mãe, tal como fazia o Rei. 

Apostas à parte, como ficou então o rapaz? A verdade é que o este se apercebera da trama, não fossem os pajens fazer uso do conhecimento da vida da Coroa, e ia já preparado para a ocasião. Enganou o pai e a rameira e ainda deixou a nota na cabeceira. Fez do pai tolo e enganado, da mulher um trapo usado e ficou ele bem calado!
Já dizia a jovem aia, em jeito de lengalenga: "pequeno senhor, um dia que vos quiserdes fazer rei, não olheis aos caminhos de vosso pai, que onde este caminha sempre houve outra companhia. Fazei valer a força que tendes e mostrai como ser homem a sua senhoria!"