Pairam
no ar, leves, os pedaços do pó que a criada ainda não apanhou. A senhora dorme.
Já Dom senhor abre, sem qualquer disfarce ou embaraço, sua real pestana para
verificar se a pajem se digna a dobrar os joelhos para limpar debaixo do móvel
que fica de frente para ele (não tivesse sua senhoria ordenado que fossem
curtas as vestes).
Nos
corredores, junto com o primeiro raio da manhã, corre já a pequena princesa.
Cabelo ainda solto das vis amarras de sua aia, descalça, calca o real piso que,
demorada, percorre até ao quarto daquele que um dia lá fez o jeitinho de deixar
que sua esposa, coitada, se servisse da força real que este ostentava trazer no
sangue para lhe por no santo ventre tão esperado rebento (já a mãe do Rei lhe
dava palmadinhas nas costas: "olhai, senhor, que ou fazeis de vossa rainha
mulher, ou fazeis de vós menino). Lembrava, ao sonhar, como tinha decorrido tal
noite (que quase foi dia)...
Escolhidas as vestimentas, ordenadas as ferramentas (que quase não cumpriam o dever),
prepara-se então El Rei para se juntar a sua virgem esposa. Levanta então, com pesado esforço,
do trono: começa por acordar o dormente pézinho que o couro já não aquece
(aquece-o a gordura ao invés), arrasta uma perna para a frente da outra,
levanta a barriga e começa a marcha, lenta, até ao fundo corredor onde, já
fazia horas, se preparava a recepção do fervilhante (assim se esperava) sangue
real.
Já
na caminha de madeira, herança de El Rei Dom Costume, estava imóvel e serena
pureza que já quase adormecera.
Com
uma mão caída sobre o travesseiro a pronto ajeitado pela aia e a outra sobre o
inexplorado peito, sua majestade a rainha esperava a chegada de seu senhor
(apenas porque marido seria demasiado plebeu).
Chega
o rei! As arpas principiam então a melodia que embalaria o senhor no caminho do
dever: ele deitado, ela lá se envolve nele, solta um ligeiro "ui"
(que os escondidos hábito e vontade ensinaram a simular) e está então preparada
para repousar, não vá a força real ter sido pouca e ter-se ficado a criança a meio
do real ventre.
"Acorde
senhora, acorde!" E lá desperta sua senhora do sono (não arrisco dizer
sonho por não saber se seria antes pesadelo) e, prontamente, chama por sua
pequena Matilde, a segunda. Despenteada, com cheiro ainda de cozinha, chega a pequenita,
que salta para o colo da aia (não que não tivesse vontade de o fazer para o
colo de sua mãe, mas a pesada coroa não deixava espaço para mais nada sobre
aquele corpo). Cheiro a cozinha, sim, um cheiro que já seu pai trazia. Não que
o Rei a este compartimento se dirigisse (pelo menos que assim se deva pensar),
não, apenas porque sua majestade havia continuado com o cozinheiro do palácio o
serviço que seu marido não foi capaz de desempenhar. Fez do cozinheiro o pai do
herdeiro que, por ser de mais tenra idade, lá satisfez a necessidade.
Entre
os seios da rainha, calou a boca o criado. Lá fez a sua função, mesmo sabendo
que filho seu chamaria pai a outro. Se o rei sabia? É claro. Que sua senhora ia
provando as maçãs que o povo trazia ao palácio, sabia e não se importava ele.
Se preciso fosse também dava uma dentadinha nas batatas que lhe vinham as
jovens filhas do agricultor trazer a provar. E assim se iam fazendo os favores e
as trocas. Fosse a coroa pequena e teríamos o caldo nas couves, mas, como o Rei
também herdou de seu pai a pesada ornamentação que trazia na testa, está o
caso resolvido.
Mas
no meio de tanta correria, tanta entrada e saída do palácio, com tantas
heranças desconhecidas (mas apreciadas) de pais para filhos
passadas, onde fica a avó da princesa? A verdade é que a gentil senhora,
percebendo a nora, se teria que manter nas caves e nas cozinhas. Afinal de
contas, quem iria, se não ela, dizer ao cozinheiro e ao agricultor que
mandassem, respectivamente, a mercadoria à rainha e ao rei, a ver se de seu
agrado era? Fazia a antiga rainha os preparativos para toda a corte e ainda se
juntava a esta: mandava vir o primo do falecido rei, este ajudava-a e (herdando
o cavalheirismo do irmão) ainda a levava a ver os jardins à noite, quando já
todos dormiam, não fosse pobre senhora assustar-se com um toquezinho ou outro
que pudesse surgir no escuro.
A
criança, jovem princesa, essa deixa-a cantar pelo corredor fora, deixai-a
correr livre pelos quartos que um dia, quando crescer e sua mãe lhe ensinar a
ser rainha, se há-de mudar para a cave. Assim não demorará metade do
tempo que demorou sua avó, nem um terço do que demorou sua mãe até à cozinha,
quando se acertar a noite em que chegue a sua vez de receber a semente que traz
cravado um passado e um futuro de reais mentiras.
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