sábado, 27 de outubro de 2012

REAL(mente) COSTUME!

Pairam no ar, leves, os pedaços do pó que a criada ainda não apanhou. A senhora dorme. Já Dom senhor abre, sem qualquer disfarce ou embaraço, sua real pestana para verificar se a pajem se digna a dobrar os joelhos para limpar debaixo do móvel que fica de frente para ele (não tivesse sua senhoria ordenado que fossem curtas as vestes). 


Nos corredores, junto com o primeiro raio da manhã, corre já a pequena princesa. Cabelo ainda solto das vis amarras de sua aia, descalça, calca o real piso que, demorada, percorre até ao quarto daquele que um dia lá fez o jeitinho de deixar que sua esposa, coitada, se servisse da força real que este ostentava trazer no sangue para lhe por no santo ventre tão esperado rebento (já a mãe do Rei lhe dava palmadinhas nas costas: "olhai, senhor, que ou fazeis de vossa rainha mulher, ou fazeis de vós menino). Lembrava, ao sonhar, como tinha decorrido tal noite (que quase foi dia)...


Escolhidas as vestimentas, ordenadas as ferramentas (que quase não cumpriam o dever), prepara-se então El Rei para se juntar a sua virgem esposa. Levanta então, com pesado esforço, do trono: começa por acordar o dormente pézinho que o couro já não aquece (aquece-o a gordura ao invés), arrasta uma perna para a frente da outra, levanta a barriga e começa a marcha, lenta, até ao fundo corredor onde, já fazia horas, se preparava a recepção do fervilhante (assim se esperava) sangue real.
Já na caminha de madeira, herança de El Rei Dom Costume, estava imóvel e serena pureza que já quase adormecera.
Com uma mão caída sobre o travesseiro a pronto ajeitado pela aia e a outra sobre o inexplorado peito, sua majestade a rainha esperava a chegada de seu senhor (apenas porque marido seria demasiado plebeu).


Chega o rei! As arpas principiam então a melodia que embalaria o senhor no caminho do dever: ele deitado, ela lá se envolve nele, solta um ligeiro "ui" (que os escondidos hábito e vontade ensinaram a simular) e está então preparada para repousar, não vá a força real ter sido pouca e ter-se ficado a criança a meio do real ventre.


"Acorde senhora, acorde!" E lá desperta sua senhora do sono (não arrisco dizer sonho por não saber se seria antes pesadelo) e, prontamente, chama por sua pequena Matilde, a segunda. Despenteada, com cheiro ainda de cozinha, chega a pequenita, que salta para o colo da aia (não que não tivesse vontade de o fazer para o colo de sua mãe, mas a pesada coroa não deixava espaço para mais nada sobre aquele corpo). Cheiro a cozinha, sim, um cheiro que já seu pai trazia. Não que o Rei a este compartimento se dirigisse (pelo menos que assim se deva pensar), não, apenas porque sua majestade havia continuado com o cozinheiro do palácio o serviço que seu marido não foi capaz de desempenhar. Fez do cozinheiro o pai do herdeiro que, por ser de mais tenra idade, lá satisfez a necessidade.


Entre os seios da rainha, calou a boca o criado. Lá fez a sua função, mesmo sabendo que filho seu chamaria pai a outro. Se o rei sabia? É claro. Que sua senhora ia provando as maçãs que o povo trazia ao palácio, sabia e não se importava ele. Se preciso fosse também dava uma dentadinha nas batatas que lhe vinham as jovens filhas do agricultor trazer a provar. E assim se iam fazendo os favores e as trocas. Fosse a coroa pequena e teríamos o caldo nas couves, mas, como o Rei também herdou de seu pai a pesada ornamentação que trazia na testa, está o caso resolvido. 


Mas no meio de tanta correria, tanta entrada e saída do palácio, com tantas heranças desconhecidas (mas apreciadas) de pais para filhos passadas, onde fica a avó da princesa? A verdade é que a gentil senhora, percebendo a nora, se teria que manter nas caves e nas cozinhas. Afinal de contas, quem iria, se não ela, dizer ao cozinheiro e ao agricultor que mandassem, respectivamente, a mercadoria à rainha e ao rei, a ver se de seu agrado era? Fazia a antiga rainha os preparativos para toda a corte e ainda se juntava a esta: mandava vir o primo do falecido rei, este ajudava-a e (herdando o cavalheirismo do irmão) ainda a levava a ver os jardins à noite, quando já todos dormiam, não fosse pobre senhora assustar-se com um toquezinho ou outro que pudesse surgir no escuro.


A criança, jovem princesa, essa deixa-a cantar pelo corredor fora, deixai-a correr livre pelos quartos que um dia, quando crescer e sua mãe lhe ensinar a ser rainha, se há-de mudar para a cave. Assim não demorará metade do tempo que demorou sua avó, nem um terço do que demorou sua mãe até à cozinha, quando se acertar a noite em que chegue a sua vez de receber a semente que traz cravado um passado e um futuro de reais mentiras.
 

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