Jaz
ali, ainda quente e ferida, a mãe de uma criança agora órfã! Aos seus pés,
descalça, com a cara marcada pelo gelo que a noite faz sentir, a pequena miúda
de apenas 2 anos ou pouco mais (já nem o tempo sabe precisar a idade desta
inocente vida) tenta trepar pelo petrificado corpo da mãe. Chora, choram as
duas: uma porque a mãe não lhe responde, outra por morrer a olhar para a
pequena bebé que ainda à pouco o seu ventre havia conhecido e a sua vista
estava prestes a perder.
A
pequenita ainda mal dava seus passitos. Não que não fosse já idade de os saber
dar, apenas nunca teve uma mão que lhe amparasse a sua aquando do tempo em que
devia largar já o imundo e lamacento chão, deixando de gatinhar, portanto.
Apesar de desconhecer o pai, para esta criança a mãe nunca foi a única figura
presente. Era frequente vê-la partir e chegar, por 5 minutos que fosse, com um
homem, que nem todos os dias era o mesmo. Bastava olhar para aquele olhar, um
olhar tão novo e já tão cansado de rostos alheios a si, rostos perversos e
sujos, mãos grutescas e excessivamente curiosas; que se percebia logo um pouco
do que era o mundo daquela menina.
A
mãe, para alguns rameira e trapo de esquina, para outros mulher sem sentimento
algum ou emoção, estava sempre ali, num insaciável vai e vem, sempre a pisar
uma rota que encarava todos os dias com a mesma expressão na cara:
absolutamente nenhuma. Nem o corpo lhe parecia já pertencer. Parecia que as
próprias pedras que calcava lhe conheciam já os pés e os faziam andar em
frente. As mãos, caídas ao longo da anca, pareciam já nada sentir. O olhar,
esse sim, era nele que transparecia a perdição, a ausência de uma qualquer
coisa, de um alguém qualquer, de um ser que pudesse dar razão ao existir
daquele gasto e sujo corpo. Aparentava saber de cor as ruas que percorria
consoante o rosto que se lhe apresentava.
Não
pensava já ao que ia, apenas ia. Ia e voltava sem qualquer tipo de
justificação, pelo menos que assim pudesse perceber a pequena que deixava
embrulhada numa manta de trapos que roubou no dia do seu nascimento. Pobre
criança. Todos os dias os seus olhos perdiam um pouco do brilho que a lua lhe
dava nas noites em que o medo e o abandono lhe faziam companhia. Chorava,
chorava durantes horas, durantes luas... e nunca tinha uma mão, um dedo que
fosse, a que se agarrar. Que é feito de ti mulher? Que é feito do que deverias trazer
por de trás desse peito inchado? Onde perdeste o coração que não ouve já o de
tua filha? Dizei-me, dizei-me se ainda tendes voz! Se não vo-la tiverem já
roubado aqueles que te fazem gritar por um prazer que já nem fingis sentir.
Ruas
de lama, de sangue, de nojo! Chega um homem, um senhor, um agricultor, quem
for... larga tudo e vai, vai sem temer quem encontrará por debaixo das vestes
que já nem se preocupa em ver. Apenas chega, fecha os olhos e deixa que tudo
aconteça, que tudo lhe façam. Já nem a dor consegue sentir. Nem sequer o mais
repudiante homem lhe faz espécime. Perdeu-se!
"Pergunto-me,
pergunto-me fatidicamente: que raio de mulher será esta que vende o corpo que
já nem carrega por vontade, que se deixa cair nos braços de homens e vagabundos
por meia-dúzia de tostões e que parece fazer de sua filha um adereço que larga
quando não precisa?" Assim pensava eu!
Agora,
agora tudo mudou. Agora sei a resposta a estas questões, agora sei que
sentimento (sim, existia um) movia aquele corpo sem aparente razão. Agora sei
que mulher era capaz de protagonizar tais acções. Era a mesma mulher que matou
o marido para que este não fizesse à filha o mesmo que lhe fizera, um dia, seu
pai; meteu-a na rua, sem remorso ou arrependimento, para que ganhasse a vida -
dizia ele - com as mesmas pernas com que também nas ruas engravidou. Era ainda
a mulher que hoje percebo porque sempre regressava para junto da sua filha:
apenas quando olhava para aqueles redondos olhos, para aquela pequena criança,
conseguia lembrar os tempos em que também ela fora menina, o tempo em que ainda sentia alegria quando podia passar nas ruas apenas sorrindo e a
cantar, sem que a vissem como hoje vêm, como um brinquedo sexual.
A
certo dia, quando voltava da rua onde deixara mais um homem satisfeito,
deparou-se com a sua menina acordada, apenas coberta com a manta cada vez mais
gasta. Pensou por um pouco (parecia que o seu olhar mudava), segurou na pequena
por algum tempo e disse-lhe: "Que assim te livres de um peso que eu à
muito carrego e que te não quero passar". Aguardou a chegada do oficial
que já sabia passar a fazer a ronda dali a nada, deitou a menina no chão e,
assim que ouviu as suas botas pisar as pedras, cravou no peito a faca que
trazia na meia rasgada e deixou cair uma lágrima. Despediu-se assim das ruas,
já de olhos fechados e com dor gravada no rosto, a mulher que queria dar à
filha uma outra vida que não a sua: "Órfã de pai e mãe, mas criança serás"!
Questiono-me porque assim tenha sido. Talvez porque nem todos nascem em berço d'ouro, porque nem sempre todos nascem para ser alguém cujo nome consta nos livros do historiador... porque haverá sempre alguma filha das ruas por aí!
Questiono-me porque assim tenha sido. Talvez porque nem todos nascem em berço d'ouro, porque nem sempre todos nascem para ser alguém cujo nome consta nos livros do historiador... porque haverá sempre alguma filha das ruas por aí!
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