quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Julga(ment)o!

A mão roxa de tanto frio. Pernas, esguias, encostadas ao peito que apertam cada vez mais na tentativa de enganar o frio que os calções lhe vestem. Pela parede escorre a água que gelo se torna ao cair, gota-a-gota no chão que o gelo faz cristalino. É este gelo que esconde a imundice da rua: vidas de lama, sangue de corações que já não batem, olhares que se prenderam ao chão pelas cordas da vergonha e ainda um travo a medo que ainda hoje se alimenta do ecoar daquela rua.
 
A pequena chora. Os pulmões enchem-se com cada vez mais ar e lá vão libertando tantas lágrimas quanto a memória e a dor permitem largar. Esfrega os olhos com a terra que já se lhe confunde com a pele das pontas dos dedos que outrora largam os de sua mãe. Aperta um pouco mais as pernas e crava os joelhos feridos nas costelas. Grita, mas grita em silêncio. Soubessem todos como o seu silêncio é tão ruidoso e todos paravam para a ouvir. Um ruído tão forte que a consome por dentro e lhe faz ficar ali, imóvel, somente à espera que um dia a venham buscar.
 
Mas porque falo? Quem me concede este papel de narrador passivo que se limita a ser os olhos de uma situação que parece não mudar? Quem? Abre os olhos rapazinho, intervém, faz por mudar o que tanto te transtorna a visão. Sente como se fosses tu ali, ali mesmo no frio com apenas a companhia de ninguém, como se fosses tu quem não sabe por que mão esperar para saltar daquele imundo e pesado chão, quem se senta com receios de avançar sozinho.
 
Pudesse eu ter forças, pudesse eu rasgar a janela e passar para o lado da acção e deixar de vez esta narração que me torna tão frio, sem sequer fazer por tentar ajudar aquela e tantas outras crianças que assim vivem, sozinhas, desamparadas e com receio de ser mais, de prosseguir com sonhos que lhe levaram ou que simplesmente nunca lhe deixaram conhecer. Mas, por um outro lado, porquê dar-me a esse trabalho se há tantas almas que encarnam no corpo da maldade, da frieza? São tantos os que por aí se vangloriam com elmos de sonhos desfeitos e se fazem guerreiros que tomam por armas as pedras que à primeira oportunidade lançam contra a primeira débil criatura que atravessa no seu caminho (fosse tão pesada a sua consciência como as pedras que atiram e seria imensurável a altura de que iriam cair).
 
Ahh poupem-se os discursos e todas essas lamechices do bonzinho! Quero ser como eles, quero beber do cálice de prata e comer ao jantar o que por mim roubam à ralé. Quero ser senhor de tronos e ostentar coroas de bronze que a tradição manda usar. Quero trazer nas veias um veneno que se fortalece com a raiva de que me alimento. Não me critiquem, não me critiquem quando parece que o mais fácil é por ao rei a coroa do que fazer-lhe de almofada. Não me julguem quando vejo que tantos preferem carregar pedras que ajudar a removê-las dos que um dia estiveram sobre o mesmo tecto.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Escalada minha...

Há dias em que sinto que me falham as pernas e os braços. Estas primeiras não me permitem chegar ao ponto que há tanto tempo quero tomar como meu. Já os braços, esses, não me obedecem e teimam em agarrar outros objectivos que não o que tanto me querem ofecer.

São caminhadas atrás umas das outras, trilhos cada vez mais esguios que estreitam as opções de percurso e vales que se fazem seguir por montanhas que, num àpice, desfazem toda a calmia que até então havia sido estabelecida.

Inconstante, assim descreveria esta jornada. Meses passados, uns dias melhor, outros pior. Dias de lágrimas, ora de felicidade, ora de desalento, uma vez de ânimo e coragem pela voz dos semelhantes, outa vez dias de arrependimento e mágoa pela voz dos restantes. Mas assim aprendi a fazer escalada. Se calhar ainda não me tinha apercebido que a diferença está em ser eu a descobrir qual a melhor corda, o melhor gancho que me irá prender na melhor e mais sólida rocha e, aí sim, poderei chegar ao tal patamar que não alcancei até então.

Alguns podem chamar-lhe maturidade, eu prefiro chamar-lhe experiências. São vivências diárias, com outros corpos que a mim se juntam nesta batalha, que me levam até ao próximo nível. Se será o final? Claro que não, apenas um próximo, um próximo que segue de um outro e outro e muitas mais etapas que havemos de percorrer. Não lhe conheço ainda o destino - assim quer o tempo - nem sei quando irei dar-me a conhecer a ele mas, isso é certo, a cada dia que passa vou tentando recolher as ferramentas que penso (e é neste pensar que reside o meu erro) serem necessárias para a futura (incerta, porém) altura.

Como alguns de nós nos vamos apercebendo, nem todos os caminhos são apenas constuídos de pedras, terra e plantas: alguns têm também rios que nos fazem remar contra marés, ventos que o senhor manda soprar para ver quão forte é a nossa passada, temperaturas que nos fazem escaldar quando o tempo pede que estejamos frios... enfim, uma imensidão de outros factores adjacentes a este precurso que se torna tão penoso por vezes. "Quem corre por gosto não cansa", dirme-i-as agora, talvez! É certo e sabido que assim deve ser.

Tento, tentas, tentamos todos chegar lá e até juntamos mantimentos e unimos esforços. De vez em quando um caminheiro alcança a sua meta. Que alívio! Sorrio e dou com mais força as próximas puxadelas na corda que me serve de segurança (não vá a pedra principal ceder) e subo, e escalo aquela ingreme parede de rochas amorfas com mais vontade ainda. Será raiva este sentimento, o que me move até lá cima? Seguro que não. É, sim, uma vontade reanimada, uma paixão reforçada, um abrir de olhos que me encoraja a subir até ao cimo, mesmo sem saber que me espera por lá ou sem saber sequer qual será esse fim. Mas, aprende rapazinho, o que importa é ter-se um fim. Só assim sabes para onde puxar pela corda!

Haverá de certo quem deite pela corda óleo - faz parte - mas haverá também que erga escadas ao lado da corda que sobes e que te dê a mão quando precises!
Por isso, sim, precisamente por isso quero continuar a escalar para um dia mais tarde, mesmo que lá não chegue, possa dizer que me orgulho de ter tentado!

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Aos nossos olhos...


Hoje eu, amanhã poderás ser tu! Sim, acredito que sim, que já todos sentimos que as nossas mãos perderam força e deixaram escapar por entre dedos uma vontade que não nos pertence mais. Quantos de nós não deixaram já fugir sonhos, pessoas, desejos, aspirações... um conjunto não mensurável de coisas, materiais ou não, que faziam de nós uma pessoa que hoje não vemos no espelho. Se calhar já lá vão os dias em que podíamos sentir que existia um "nós", que existia um tu que fazia de mim um eu acompanhado.

Hoje ainda consigo fechar os olhos e ver-te ali, sentada no murete do jardim ondem todos os dias vias nascer o sol. "Um dia hei-de ser tão quente e tão intensa como ele", dizias. E eu, imerso nos teus lábios, fingia ouvir cada palavra que proferias como se da primeira se tratasse. Não há quem diga que uma palavra nunca antes ouvida tem mais encanto? Pudesse eu ainda hoje encantar-me com aqueles suspiros falados que deixavas transparecer com um olhar.

Deixa tempo, deixa que volte atrás e me perca novamente nos braços de quem um dia me fez ver um sol diferente, de quem um dia me fez sorrir como um parvo, mas um parvo feliz. Fútil, ingénuo, poderia até ser, mas era um fútil e ingénuo que tinha em ti um outro lado, um olhar diferente que me fazia sentir como o estúpido mais ridículo mas o mais importante. Só tu sabias, só tu sabias como franzir o sobrolho quando te dizia as idiotices do costume. Se ainda hoje fosse possível, repetia todas essas palavras que nos fizeram ser história e que nos fecharam num livro que narrou prosas que só para nós tinham uma razão de ser. 

Para ti nunca fui aquela pessoa mais bonita, a que se vestia melhor ou que fazia chorar as pedras que calcava, mas era para ti uma imperfeição perfeitamente saudável. Sempre disseste que não buscavas em mim todas as qualidades, sempre fizeste ver a todos que os meus defeitos, as minhas taras e manias ainda te faziam correr com mais vontade para mim. Trazias no pensamento e nos lábios a vontade de me arrasar em discussões que me consentias tão tresloucadas. Mas eramos assim: dois tolos que faziam de um sentimento alguma coisa, alguma coisa que para ambos tinha nascido da mesma forma e que acabou por morrer contigo.

Levaste-me a emoção mas deixaste o sentimento. Ainda tenho o teu sorriso gravado na mente, a forma como me davas bofetadas por te não dizer "estás tão feia hoje"! Era isso, sempre foi isso que marcou a diferença: amámos sem querer e quisemos sempre amar assim. Aos olhos dos demais podíamos ser "aqueles dois atolambados", aqueles que fugiam ao padrão, aqueles que caminhavam descalços sobre a pedra quente, os que corriam separados ao invés de se unirem. Mas nunca quis correr contigo mas, sim, por ti. Por ti corri, por ti sorri, falei, gritei, exaltei e até extrapolei limites que nos quiseram impor, mas sempre por ti. Longe os que puseram à nossa frente amarras que dia algum nos serviram de entraves (se bem que tu sempre tiveste aquela queda para escolher os caminhos mais difíceis). 

Hoje vivo assim, apenas com as memórias que me deixaste. Não quero fotografias que essas fá-las o tempo perder a cor nem quero objectos que de ti me façam lembrar. Nunca precisámos de nos marcar fisicamente um ao outro não seria agora que assim seria. Lembro, lembro a cada dia o sol como sempre mo descreveste, a relva como a sentimos juntos, as experiências como m'as ensinaste a viver, lembro, lembro...

E assim adormeço. Acordo, novo dia, e tudo se repete. Espero que um dia possa entregar ao vento esta semente que juntos plantámos para que ela cresça noutras vidas. Outras vidas que se conheçam e apaixonem tal como nós fizemos quando ainda podia sentir a respiração tua que hoje me foi tirada. 

Agora que foste embora, espero um dia esquecer a tua morada para não correr mais à tua porta e ainda esperar pelo teu "bom dia" (com aquele tom de quem acordou fazia 5 minutos). Se um dia te apagar da memória, que me concedam novas vivências como as que contigo vivi. Tolo, diferente, parvo e enlouquecido, mas feliz! A quem não entender ou troçar do que sinto, não lhes levo a mal nem teço comentários, apenas agradeço por me fazerem sentir ainda mais que aquilo que vivemos apenas aos nossos olhos foi especial. Não é assim que deve ser?
Onde quer que estejas, descansa. Talvez um dia volte a sentir nos meus braços o teu ou um outro perfume!

domingo, 28 de outubro de 2012

Filha das ruas!


Jaz ali, ainda quente e ferida, a mãe de uma criança agora órfã! Aos seus pés, descalça, com a cara marcada pelo gelo que a noite faz sentir, a pequena miúda de apenas 2 anos ou pouco mais (já nem o tempo sabe precisar a idade desta inocente vida) tenta trepar pelo petrificado corpo da mãe. Chora, choram as duas: uma porque a mãe não lhe responde, outra por morrer a olhar para a pequena bebé que ainda à pouco o seu ventre havia conhecido e a sua vista estava prestes a perder.

A pequenita ainda mal dava seus passitos. Não que não fosse já idade de os saber dar, apenas nunca teve uma mão que lhe amparasse a sua aquando do tempo em que devia largar já o imundo e lamacento chão, deixando de gatinhar, portanto. Apesar de desconhecer o pai, para esta criança a mãe nunca foi a única figura presente. Era frequente vê-la partir e chegar, por 5 minutos que fosse, com um homem, que nem todos os dias era o mesmo. Bastava olhar para aquele olhar, um olhar tão novo e já tão cansado de rostos alheios a si, rostos perversos e sujos, mãos grutescas e excessivamente curiosas; que se percebia logo um pouco do que era o mundo daquela menina. 

A mãe, para alguns rameira e trapo de esquina, para outros mulher sem sentimento algum ou emoção, estava sempre ali, num insaciável vai e vem, sempre a pisar uma rota que encarava todos os dias com a mesma expressão na cara: absolutamente nenhuma. Nem o corpo lhe parecia já pertencer. Parecia que as próprias pedras que calcava lhe conheciam já os pés e os faziam andar em frente. As mãos, caídas ao longo da anca, pareciam já nada sentir. O olhar, esse sim, era nele que transparecia a perdição, a ausência de uma qualquer coisa, de um alguém qualquer, de um ser que pudesse dar razão ao existir daquele gasto e sujo corpo. Aparentava saber de cor as ruas que percorria consoante o rosto que se lhe apresentava. 

Não pensava já ao que ia, apenas ia. Ia e voltava sem qualquer tipo de justificação, pelo menos que assim pudesse perceber a pequena que deixava embrulhada numa manta de trapos que roubou no dia do seu nascimento. Pobre criança. Todos os dias os seus olhos perdiam um pouco do brilho que a lua lhe dava nas noites em que o medo e o abandono lhe faziam companhia. Chorava, chorava durantes horas, durantes luas... e nunca tinha uma mão, um dedo que fosse, a que se agarrar. Que é feito de ti mulher? Que é feito do que deverias trazer por de trás desse peito inchado? Onde perdeste o coração que não ouve já o de tua filha? Dizei-me, dizei-me se ainda tendes voz! Se não vo-la tiverem já roubado aqueles que te fazem gritar por um prazer que já nem fingis sentir.

Ruas de lama, de sangue, de nojo! Chega um homem, um senhor, um agricultor, quem for... larga tudo e vai, vai sem temer quem encontrará por debaixo das vestes que já nem se preocupa em ver. Apenas chega, fecha os olhos e deixa que tudo aconteça, que tudo lhe façam. Já nem a dor consegue sentir. Nem sequer o mais repudiante homem lhe faz espécime. Perdeu-se!

"Pergunto-me, pergunto-me fatidicamente: que raio de mulher será esta que vende o corpo que já nem carrega por vontade, que se deixa cair nos braços de homens e vagabundos por meia-dúzia de tostões e que parece fazer de sua filha um adereço que larga quando não precisa?" Assim pensava eu!

Agora, agora tudo mudou. Agora sei a resposta a estas questões, agora sei que sentimento (sim, existia um) movia aquele corpo sem aparente razão. Agora sei que mulher era capaz de protagonizar tais acções. Era a mesma mulher que matou o marido para que este não fizesse à filha o mesmo que lhe fizera, um dia, seu pai; meteu-a na rua, sem remorso ou arrependimento, para que ganhasse a vida - dizia ele - com as mesmas pernas com que também nas ruas engravidou. Era ainda a mulher que hoje percebo porque sempre regressava para junto da sua filha: apenas quando olhava para aqueles redondos olhos, para aquela pequena criança, conseguia lembrar os tempos em que também ela fora menina, o tempo em que ainda sentia alegria quando podia passar nas ruas apenas sorrindo e a cantar, sem que a vissem como hoje vêm, como um brinquedo sexual. 

A certo dia, quando voltava da rua onde deixara mais um homem satisfeito, deparou-se com a sua menina acordada, apenas coberta com a manta cada vez mais gasta. Pensou por um pouco (parecia que o seu olhar mudava), segurou na pequena por algum tempo e disse-lhe: "Que assim te livres de um peso que eu à muito carrego e que te não quero passar". Aguardou a chegada do oficial que já sabia passar a fazer a ronda dali a nada, deitou a menina no chão e, assim que ouviu as suas botas pisar as pedras, cravou no peito a faca que trazia na meia rasgada e deixou cair uma lágrima. Despediu-se assim das ruas, já de olhos fechados e com dor gravada no rosto, a mulher que queria dar à filha uma outra vida que não a sua: "Órfã de pai e mãe, mas criança serás"!

Questiono-me porque assim tenha sido. Talvez porque nem todos nascem em berço d'ouro, porque nem sempre todos nascem para ser alguém cujo nome consta nos livros do historiador... porque haverá sempre alguma filha das ruas por aí! 

sábado, 27 de outubro de 2012

REAL(mente) COSTUME!

Pairam no ar, leves, os pedaços do pó que a criada ainda não apanhou. A senhora dorme. Já Dom senhor abre, sem qualquer disfarce ou embaraço, sua real pestana para verificar se a pajem se digna a dobrar os joelhos para limpar debaixo do móvel que fica de frente para ele (não tivesse sua senhoria ordenado que fossem curtas as vestes). 


Nos corredores, junto com o primeiro raio da manhã, corre já a pequena princesa. Cabelo ainda solto das vis amarras de sua aia, descalça, calca o real piso que, demorada, percorre até ao quarto daquele que um dia lá fez o jeitinho de deixar que sua esposa, coitada, se servisse da força real que este ostentava trazer no sangue para lhe por no santo ventre tão esperado rebento (já a mãe do Rei lhe dava palmadinhas nas costas: "olhai, senhor, que ou fazeis de vossa rainha mulher, ou fazeis de vós menino). Lembrava, ao sonhar, como tinha decorrido tal noite (que quase foi dia)...


Escolhidas as vestimentas, ordenadas as ferramentas (que quase não cumpriam o dever), prepara-se então El Rei para se juntar a sua virgem esposa. Levanta então, com pesado esforço, do trono: começa por acordar o dormente pézinho que o couro já não aquece (aquece-o a gordura ao invés), arrasta uma perna para a frente da outra, levanta a barriga e começa a marcha, lenta, até ao fundo corredor onde, já fazia horas, se preparava a recepção do fervilhante (assim se esperava) sangue real.
Já na caminha de madeira, herança de El Rei Dom Costume, estava imóvel e serena pureza que já quase adormecera.
Com uma mão caída sobre o travesseiro a pronto ajeitado pela aia e a outra sobre o inexplorado peito, sua majestade a rainha esperava a chegada de seu senhor (apenas porque marido seria demasiado plebeu).


Chega o rei! As arpas principiam então a melodia que embalaria o senhor no caminho do dever: ele deitado, ela lá se envolve nele, solta um ligeiro "ui" (que os escondidos hábito e vontade ensinaram a simular) e está então preparada para repousar, não vá a força real ter sido pouca e ter-se ficado a criança a meio do real ventre.


"Acorde senhora, acorde!" E lá desperta sua senhora do sono (não arrisco dizer sonho por não saber se seria antes pesadelo) e, prontamente, chama por sua pequena Matilde, a segunda. Despenteada, com cheiro ainda de cozinha, chega a pequenita, que salta para o colo da aia (não que não tivesse vontade de o fazer para o colo de sua mãe, mas a pesada coroa não deixava espaço para mais nada sobre aquele corpo). Cheiro a cozinha, sim, um cheiro que já seu pai trazia. Não que o Rei a este compartimento se dirigisse (pelo menos que assim se deva pensar), não, apenas porque sua majestade havia continuado com o cozinheiro do palácio o serviço que seu marido não foi capaz de desempenhar. Fez do cozinheiro o pai do herdeiro que, por ser de mais tenra idade, lá satisfez a necessidade.


Entre os seios da rainha, calou a boca o criado. Lá fez a sua função, mesmo sabendo que filho seu chamaria pai a outro. Se o rei sabia? É claro. Que sua senhora ia provando as maçãs que o povo trazia ao palácio, sabia e não se importava ele. Se preciso fosse também dava uma dentadinha nas batatas que lhe vinham as jovens filhas do agricultor trazer a provar. E assim se iam fazendo os favores e as trocas. Fosse a coroa pequena e teríamos o caldo nas couves, mas, como o Rei também herdou de seu pai a pesada ornamentação que trazia na testa, está o caso resolvido. 


Mas no meio de tanta correria, tanta entrada e saída do palácio, com tantas heranças desconhecidas (mas apreciadas) de pais para filhos passadas, onde fica a avó da princesa? A verdade é que a gentil senhora, percebendo a nora, se teria que manter nas caves e nas cozinhas. Afinal de contas, quem iria, se não ela, dizer ao cozinheiro e ao agricultor que mandassem, respectivamente, a mercadoria à rainha e ao rei, a ver se de seu agrado era? Fazia a antiga rainha os preparativos para toda a corte e ainda se juntava a esta: mandava vir o primo do falecido rei, este ajudava-a e (herdando o cavalheirismo do irmão) ainda a levava a ver os jardins à noite, quando já todos dormiam, não fosse pobre senhora assustar-se com um toquezinho ou outro que pudesse surgir no escuro.


A criança, jovem princesa, essa deixa-a cantar pelo corredor fora, deixai-a correr livre pelos quartos que um dia, quando crescer e sua mãe lhe ensinar a ser rainha, se há-de mudar para a cave. Assim não demorará metade do tempo que demorou sua avó, nem um terço do que demorou sua mãe até à cozinha, quando se acertar a noite em que chegue a sua vez de receber a semente que traz cravado um passado e um futuro de reais mentiras.
 

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Real engano!


Ela dizia-lhe que não! Ora, sejamos explícitos: dizia? Não, acenava de forma subtil o lencinho que roubara ao senhor doutor por capricho, não fosse este falhar no pagamento pela ajudinha prestada. Ele insistia, insistia e até dava um paço maior que a perna a ver se a da gentil dama da sua se acercava. Um piscar de olho, um franzir de sobrancelha, e o pobre do rapaz que se não apercebia que estes gestos lhe passavam ao lado, eram simplesmente insignificantes aos maquilhados olhos da senhora. Decide então ser mais, digamos assim, atrevido: avança com um breve toque na cocha e inicia assim uma diferente abordagem no cortejo. 
Ela, habituada a ser o pavão mais admirado na sala, sorri e põe à prova (oxalá para o rapaz que num sentido literal fosse) os apetecíveis e carnudos lábios que o já cansado batom vermelho esconde. Entusiasmado por tal gesto, que para ela não passava de um habitué, lá responde na mesma moeda e liberta escassa risada. 

Troca de sinais, um passo aqui outro acolá, dá-se o cortejo por acabado e está o homem tramado. Eis que se vê cair em teia tal que não há braço que lhe valha ou perna que o socorra. Agarra-lhe ela pela mão e leva-o rumo à sala refundida num recanto que este desconhecia até então. Digo-vos eu: era o quarto da nobre senhora.
Assim ostentava tal concepção arquitectónica: um ambiente com pouca luz (só as velas quase derretidas acesas), cortinados vermelho veludo, cama semidesfeita (usada fazia horas) com os lençóis de seda turquesa à vista. Estava pronto e mais que pensado o chamariz que o iria atrair aos aposentos que, vá-se lá saber como ou porquê, aparentavam já contar com tal visita.

Disfarçando o à vontade com que se sentia já confortável, lá desaperta o botão cimeiro do corpete, que "estava a apertar", dizia. Compõe o cabelo, ajeita a saia que outrora lhe cobria os tornozelos e cruza as pernas na cadeira de napa já gasta. Ele ainda meio nervoso, desconhecedor deste tipo de situações, apenas compõe a lapela do casaco que esta teimava em desajeitar com amassos sucessivos. Juntam-se então no fundo da cama, a pretexto de retirar os sapatos que causavam incómodo e do casaco que estava a causar calor (ainda ele se questionava se esse seria realmente o "factor calor" presente).


Despachada, não tardou a fazer do inocente jovem um objecto que atirou à cama e que fez por desinibir. Provocando qualquer tipo de reacção, teria senhora seu trabalho ganho.
O rapaz, inexperiente, deixou-se ir, guiado pelas mãos e envolvente corpo que à já muito conheciam os caminhos a percorrer. Estava assim consumado o acto: um só movimento e o menino passava a ser um homem, um homem que queria agora dominar a situação já que, afinal de contas (mesmo sem o saber), lhe iria sair cara a ousadia. Um respirar mais acelerado, alguma estranheza ou talvez repúdio e uma envolvência cada vez mais acrescida por parte do jovem. Ela habituada e experiente, ele numa embrulhada mas contente. 

Envolto no cheiro que fora por muitos deixado dos lençóis, acorda o rapaz. Ele satisfeito, para ela tanto faz!
Prepara as vestes que a mãezinha lhe dera para festa da noite, calça as botifarras que lhe oferecera seu avô antes de morrer (teria, possivelmente umas que melhor lhe servissem na ora da partida) e desperta do grosseiro ressonar a senhora dona. Acorda ela mal disposta porque não havia ganho a aposta.
Verdade, eis que El Rei, Dom, Senhor, Excelência e todas as idiossincrasias a este cargo associadas, tinha contratado a rameira que o havia desflorado, para também cumprir tal serviço com seu filho amado. Ora, mas porquê a aposta? Então não é que sua majestade, querendo fazer do filho um macho (assim se entendia na altura), teria feito a aposta que este se acanharia e não iria fazer valer o sangue real que nas veias trazia? Já a contratada dama atreveu apostar ainda mais, que este fugiria a sete pés para as saias de sua mãe, tal como fazia o Rei. 

Apostas à parte, como ficou então o rapaz? A verdade é que o este se apercebera da trama, não fossem os pajens fazer uso do conhecimento da vida da Coroa, e ia já preparado para a ocasião. Enganou o pai e a rameira e ainda deixou a nota na cabeceira. Fez do pai tolo e enganado, da mulher um trapo usado e ficou ele bem calado!
Já dizia a jovem aia, em jeito de lengalenga: "pequeno senhor, um dia que vos quiserdes fazer rei, não olheis aos caminhos de vosso pai, que onde este caminha sempre houve outra companhia. Fazei valer a força que tendes e mostrai como ser homem a sua senhoria!"  

domingo, 8 de julho de 2012

Vidas de lama... (continuação)

O galo canta, canta cada vez mais cedo e teima em acordar-me de um sono que à muito não é real. Finjo dormir, fecho os olhos e oiço constantemente,  na minha cabeça, os gritos das mulheres que tentavam escapar das nojentas mãos dos homens que lhes entravam tenda a dentro, os gritos dos filhos a quem tapavam os olhos para que não vissem aquilo que muitas vezes estava na origem do seu nascimento. Gritavam tão alto! Grunhiam até como se um pedaço de vida perdessem, como se lhes levassem parte da alma que as assombrava e que as fazia viver de cabeça caída, envergonhadas por terem que se acostumar a estar prontas para receber os homens que os seus tinham ido defrontar.

Então tudo parava. Um estranho silêncio que um ou outro choro irrompiam. Era nestas alturas que me amedrontava ainda mais e que desejava respirar por mais uns minutos que fosse, que ao menos pudesse voltar a ver os que ainda nessa manhã me tinham dado o pouco que tinham no tacho, para enganar a fome que à tanto perdura.
O cheiro a medo e a raiva simultânea pairava em volta das pobres mulheres. Algumas mães, outras viúvas, outras apenas mulheres... todas elas sofreram de alguma forma.
O fedor que vinha do campo fazia chegar-se a grande velocidade e anunciava já a morte dos nossos. Sempre são os nossos que morrem. 

Ou morrem de espada e machado cravados no corpo, ou morrem porque perdem realmente a vida que, enganados, ainda pensavam possuir. Oiçam-me: as nossas vidas, as que julgamos nossas, não pertencem se não àqueles que, por de trás da muralha, se vão alimentando de vidas perdidas, aqueles que arrotam vitórias que nós lhes vamos servindo em travessa de cobre, nós os reles vagabundos que a lama ensanguentada disfarça na sola dos pés dos senhores.

Cheirassem seus pontiagudos e delicados narizes as casas onde vou descansado os ossos (não tenho uma fixa desde que me levaram os que me puseram no mundo) e veriam que vidas, essas que tanto menosprezam, serão mais do que viver sentado numa poltrona, mais do que viver num constante dilema sobre que vestido usar para que seu marido consiga melhor fingir o amor que lhe convém sentir, mais do que pequenas idas e voltas entre pajens e criadas que fazem com que o Rei se perca ou desvie, sabe-se lá porquê (e sabe de certo), a meio do caminho. Vidas? Fossem eles feitos do mesmo que os nossos moribundos corpos e não de porcelana e talvez, então, conseguissem enxergar melhor o que uma vida é.

É esta minha raiva, esta minha dificuldade de perceber estes caprichosos detentores do poder, que me faz manter aqui, que me faz esconder que um dia fui um deles. Ah como me arrependo de me lembrar que em tempos, num outro reino, também eu, mesmo em criança, pegava já na ponta da seta que o meu pai, mesmo comigo ao colo, atirava do alto da torre.

Vidas de lama...

Chego agora à conclusão de que há guerras que nunca chegam a ser vencidas... por não existirem duas frentes no campo de batalha. Sei do que falo. Eu mesmo sofri na pele a frieza de uma espada empunhada por alguém duas ou três vezes mais velho e maior que eu!
As espadas deixaram de se ouvir! Uff, lá escapei a mais uma!

As mãos ficaram frouxas, os braços desgastados, as pernas cansadas e o sentimento de raiva esmorecido. Cai por terra a espada! Cabeças que ficaram no sitio, crianças que sobreviveram junto das mães que assim escaparam ao sacrifício (que não foram violadas, entenda-se), animais e terrenos que ficam por conhecer e tantas vidas que ainda se vão mantendo presas aos corpos dos que partiram de armadura cravada na pele  (umas de pau outras de ferro) e rostos cobertos pela sombra do receio, do medo de não voltar a ver os que choraram a sua ida.

Lama ensanguentada cobre agora o lugar onde se recolhem as botas dos que já não as precisam, as espadas e machados dos que perderam as mãos que os seguravam e ainda as roupas dos que verão ser queimados ainda hoje, mal se ponha o sol. É já sabido que o fedor nauseabundo da morte não tarda a assombrar os campos.

O miúdo da tenda dos ferreiros (e não me critiquem por lhe chamar assim mas o seu nome levou-o a mãe que enterraram quando o pôs no mundo), bem que tenta procurar pelo pai mas, coitado, não o consegue reconhecer em nenhum dos rostos que menos se desfigurou. Mas, perceba-se, identidade é coisa que por aqui já à muito que se perdeu. Somos todos espadas, somos todos escudos, vassouras, baldes, animais prontos a ser usados e mortos sem merecer sequer um olhar nos olhos que justifique o porquê de tal frieza!

Pudesse eu juntar todo o ferro que temos connosco, o que nos vai sua majestade cedendo em troca de umas boas dezenas de vidas perdidas em seu gentil e honrado nome, e faria deste o campo mais resistente que alguma vez cavaleiros pisaram. Sim, faria deste um campo em que crianças pudessem sê-lo, em que não tivessem que ser escondidas por ofender sua majestade a rainha ao descobrir que o marido satisfez gentil capricho na cama das cozinheiras e onde não tivesse que continuar a ouvir, constantemente, o choro de uma inocente vida recém-chegada a ser calado! Pequenas vidas que rápido conhecem a morte, mães cujo ventre recebe o fruto real e acaba desfeito, homens que nem chegam a poder criar, muitas vezes sem saberem, o filho daquele por quem morrem... 

Vidas atrás de vidas! Vidas que servem de peões neste jogo do poder, sem valor algum aos olhos de quem se senta num trono que esquece ter sido construído pelos que agora, depois de nele sentado, manda matar sem que a sua frágil e pálida pele se engelhe como sinal de preocupação ou remorso.

Vidas em tempo de guerra? Tomara eu não ter que temer pela minha a cada cantar do galo!

terça-feira, 26 de junho de 2012

Cercos (in)finitos!

Sobes a árvores, arriscas, vais mais rápido que te permitem as pernas já em esforço, entras num jogo sem regras conhecidas, levas em frente um percurso que parece ser cada vez menos teu, constróis fios... mas acabas sempre por cair na teia que outros teceram! Tentas libertar-te de amarras que parecem tão vulneráveis mas que fazem de ti um ser enfraquecido, sem bússola ou mapa por onde traçar rotas em que confiar, ficas perdido.

É precisamente esta batalha constante que faz de ti um lutador, alguém que cai uma, duas, as vezes que for preciso, mas nunca desiste. Já quase sem cordas a que te prender, olhas sempre mais além na expectativa de achar uma pedra, por pouco sólida que seja, para escalares nesta pirâmide do poder cujo sentido não encontras e pelo qual preferias não ter que lutar. 

Não vês o quanto estás a aprender? O quanto estás a fazer por ti mesmo, para que sejas cada vez mais forte e que sejas capaz de construir e polir as tuas próprias rochas, estas mais consolidadas, que te alimentem a vontade e te engrandeçam a coragem? Então anda, ergue-te desse fosso onde te escondes e quebra as muralhas que foste construindo junto daqueles que te queriam ver cada vez mais cercado!

Sim, sim é difícil estar sempre a remar contra a maré! Sim, é difícil ter de sorrir quando na verdade apenas queres verter as lágrimas que alguns pensam ser sinal de fraqueza. Essas são na verdade as lágrimas de alguém que reconhece ter errado e se orgulha de poder dizer "eu tentei"! Tentar, será provavelmente esta a palavra que muitos negam ser a chave para o sucesso mas que é a base para ser mais que um mero espectador. Um espectador que observa de forma passiva a sua vida - que cada vez menos assim o é - e deixa que sejam os outros a construir os mapas onde anota os pontos por que quer passar, aqueles que o levariam ao local onde se encontra aquilo que mais anseia.

Ora, pudesse eu responder a estas questões e resolver estes pequenos enigmas e não deixaria mais que o papel onde vai caindo uma tinta chamada de "experiência" fosse produzido pela mão que tanto insiste em intrometer-se num texto que devo ser eu a escrever e a protagonizar. Quando esse dia chegar, que se afastem todas as mãos que um dia tentaram ser a muralha que me cercava e que agora começo a deitar a baixo! 

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Sangue real... vontades esquecidas!

Entrais. Entrais repentina - como em todos os vossos gestos - com sublime toque de mulher grotesca. Senhora dos ventos, progenitora das montanhas, filha da tempestade, heis que vos apresentais, tão imponente que nem vosso nome ouso conhecer (se o conhecesse passaria dias a pronunciá-lo, tal como faria um pequenito que fatidicamente repetiu, em tempos, o nome de seu pai quando o viu partir de corpo cravado na armadura que o ferro do rei havia forjado)! 

Assim vos julgo ver: olhos desconfiados, nariz aguçado como a lança que trazeis ao peito, mãos de princesa cravadas de batalhas por outros travadas! Mas julgo, julgo porque temo enxergar com certezas criatura tal que pelo próprio pai foi descartada. Talvez por medo, é certo, talvez o tenha feito precisamente por temer os olhos que, encobertos por choros, se faziam já cortantes. 

Dessem-te vestes de camponesa e assim o serieis! Mas os corrompidos tecidos que vossa avó desviou de um outro reino, mais forte e rico por ventura, não vos libertam das amarras que o sangue do Senhor vos colocou nas veias. Não deste modo, não tirando o ouro ao intocável berço em que haveis nascido.

Ah princesa, como pareceis alta de onde vos vislumbro, tão senhora de si, tão apoiada e sustentada por pilares que as mãos de meu pai construíram antes de o vosso lhe ter colocado a espada e a armadura às costas, que já mal se erguiam. Não que fosse velho, não, apenas porque o trabalho da forja lhe tinha roubado a rigidez para o ferro que o levou a morrer em campos. (E neste momento lembrei como era forte o abraço que me havia dado aquando do tirano chamamento de sua realeza)

Como sois ingénua minha senhora, deixais que vos atirem para uma cama, imunda de tanta vergonha que nela já se acomodou, e que continua a ser palanque de cortejos infundados que apenas vos querem colocar filhos no ventre para que assim não sucumbam ao peso da coroa que tanto anseiam possuir.

Não o façais senhora, não o façais! Jurei por meu pai que haveria de vos salvar destas garras imperiais. Tomai voz, lutai contra os céus e contra os que donos deles se julgam! Em vez de filhos, dai à luz ventos e chamai vossa mãe! Dizei-lhe que traga tempestades e então isolai senhor vosso nas montanhas, tal como ele um dia me isolou nas muralhas deste reino, sem pai a quem me agarrar quando as suas servas me incorriam por pedir por um colo de mãe que não conheci nem pude velar!